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História de fundação

Aquilombar: o poder e a nobreza de conhecer e reconhecer suas raízes

Experiência Quilombo realizada por fundadores e fundadoras de startups investidas pelo Black Founders Fund

Por Google for Startups

Desde que lançamos o Black Founders Fund, em setembro de 2020, muitas coisas mudaram aqui dentro do Google for Startups - inclusive a profundidade com a qual olhamos, como instituição, para temas sociais e raciais. Ao conviver com tantos afroempreendedores, conhecendo suas dores e celebrando suas conquistas, conseguimos experienciar, ver e sentir como algumas disfunções ainda são latentes na sociedade brasileira e no ecossistema de startups.

O apagamento histórico - processo de deslocamento forçado, no qual indivíduos eram retirados de suas comunidades de origem e desembarcavam em um lugar com outros costumes, outro idioma e sem conhecer ninguém para viver sob condições de trabalho desumanas - é, sem dúvidas, uma das maiores dores dos negros diaspóricos brasileiros. Muitos cresceram ouvindo amigos e colegas comentarem sobre suas origens e histórias de seus ascendentes europeus. No entanto, quando questionados sobre a sua própria origem, a resposta, em sua maioria, é sempre a mesma: "eu não sei". Muitos só têm conhecimento da vida daqueles com quem conviveram, ou seja, no máximo quatro gerações antes da sua.

Como sabemos, a vida pessoal de cada um e a sua construção histórica e ancestral influenciam diretamente na pessoa e no profissional que o indivíduo em questão é. Ou seja, quanto mais conhecimento você adquire de si mesmo, da sua história e da luta daqueles que vieram antes de você, mais a sua jornada se fortalece. No caso dos negros, essa força vem do movimento de se aquilombar, isto é, do resgate das memórias, da compreensão da história de seu povo ancestral, suas origens e cultura.

Com esse propósito, em dezembro de 2022, convidamos empreendedores e empreendedoras das startups investidas pelo Black Founders Fund a se aquilombarem por um dia e se fortalecerem. O local escolhido foi a Casa de Cultura Fazenda Roseira, um símbolo de resistência ao tempo e às mudanças do mundo moderno.

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Em Campinas, mais de 50 mil apartamentos novos cercam a área que preservou o quilombo e ressignificou o passado escravocrata da região. O local abriga hoje a Comunidade de Jongo Dito Ribeiro, honrando e mantendo a tradição do Jongo, uma dança ancestral muito usada para o entretenimento e planejamento de fugas nas fazendas escravocratas.

A experiência imergiu àqueles que estavam presentes, que desfrutaram desde uma roda de conversa e culinária tradicional até o aprendizado e execução do Jongo.

Confira relatos de alguns dos empreendedores que estiveram presente:

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Por diversas vezes ao longo da minha trajetória fui impactado pela frase "Conhece-te a ti mesmo“. Gravada na entrada do templo de Apolo em Delfos e amplamente difundida na literatura e nas artes em geral, a sentença foi usada originalmente pelo filósofo Sócrates e ilustra bem uma das minhas mais recentes experiências: a visita à Casa de Cultura Fazenda Roseira.

De início - apesar da minha introspecção - tivemos uma roda de conversa linda com a líder do espaço, a Professora Doutora Alessandra Ribeiro. Ela é uma daquelas boas almas que estão no mundo e amamos conhecer, com seu sorriso largo e ótimo astral. De maneira simples, ela foi nos relatando a história local enquanto traçava um paralelo com nossa ancestralidade e tinha uma escuta ativa para cada história individual. A partir desse momento de conversa foi que eu percebi: resgatar quem você é permite uma satisfação mais duradoura das suas conquistas e tudo começa dentro de si.

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Nós, descendentes de pessoas da matriz africana, temos uma relação conturbada com a nossa origem. Muitas vezes não possuímos respostas para perguntas simples como "De onde somos?" e "Para onde vamos?" e ainda nos questionamos se realmente temos que agradecer tanto aos nossos ancestrais. Hoje, por causa da experiência, eu entendo a verdadeira importância de demonstrar essa gratidão, afinal, só temos nossas vidas graças aos que nos antecederam.

No meu momento de fala na roda de conversa, me senti hiperativo por causa das histórias tão semelhantes que ouvi e de tudo o que estava tentando processar racional e emocionalmente. Mas enquanto escrevia este texto e tentava descrever o meu sentir, vi claramente o quanto o continente africano sofreu e o quanto isso me impacta. Escravizar todo um povo e sua nobreza quebrou os laços de criação e extinguiu conversas repletas de sabedoria e ancestralidade que seriam transmitidas de pais para filhos. Quanta dor soma-se ao fato de famílias terem sido separadas e obrigadas a viver em lugares desconhecidos sem o aconchego daqueles que fazem a palavra "lar" ter seu sentido mais puro. Refletir sobre essa nova perspectiva me emocionou e me emociona muito desde então.

A Alessandra mostrou o poder de honrar e reconhecer o nosso passado. Muitas respostas a situações que vivenciamos ou nos questionamos desde a infância surgiram. Ainda que seja difícil descrever para quem não estava presente, a energia do local e a intencionalidade da nossa reunião com certeza emocionaram a muitos ancestrais, que observam dia após dia todos aqueles afroempreendedores, inclusive eu, que do seu modo fazem o que está - e até mesmo o que não está - ao seu alcance. Para mim é fácil dizer isso, afinal eu me emocionei e admirei a cada um que ali se fazia presente.

Ver aquela roda, composta puramente por pessoas negras, 200 anos depois, em um local que no passado foi uma Casa Grande, tem um grande significado e sentido. É a releitura de uma história. Ver todas as pessoas do quilombo com aquele sorriso me mostrou que aquele encontro foi muito além do que era visto pelos nossos olhos e das palavras que foram ouvidas. Aquele "reencontro" foi para mostrar que apesar de todo o passado, o sorriso não se foi. As tradições, por mais que tenham sido suprimidas, têm mais força do que qualquer tentativa de apagamento histórico.

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Me alegro muito, pois essa iniciativa, idealizada e executada pelo Black Founders Fund do Google for Startups, impactou amplamente na confiança e aguçou o sentimento de que realmente dias melhores virão.

Você pode e deve ser produtivo na sua vida diária, no seu trabalho, mas não se esqueça das suas raízes, pois, por mais sofrimento que todos nós afrodescendentes passamos, o sorriso e a beleza têm mais força.

Transmito essa mensagem com muito carinho e convido você a se aquilombar, buscar a sua ancestralidade e entrar em harmonia com ela, ficar em paz. Se fizer isso de coração, a vida será mais leve, mais feliz, próspera e produtiva, você verá. Não existe alegria sem honrar os que vieram antes e tanto fizeram para que tudo isso que nos cerca estivesse de pé, apesar das diversas tentativas de transformar nossa história em ruínas.

Foi um dia lindo. Obrigado.

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Desde que fui convidada a participar da experiência, o meu primeiro choque foi me dar conta de que, a menos de uma hora de São Paulo, temos um local que preserva as origens de um quilombo, com seu casarão, mata nativa, comida típica, música, ritmos e habitantes que se vestem como nossos antepassados vindos da África.

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Entrar naquele lugar me levou a refletir que os antecedentes de poucas gerações antes de mim, talvez três no máximo, eram escravos. Isso me gerou um desejo de conhecer e pertencer a um lugar que não era mais tão distante de mim.

A recepção calorosa daqueles que ali trabalham no intuito de manter as raízes africanas vivas, se transforma em acolhimento e, uma vez acolhidos, nos sentimos em um lugar seguro para falar das nossas dores e experiências. Vale ressaltar que esse grupo era composto principalmente por empresários, homens e mulheres negros que romperam a bolha discriminatória que diz que só podemos ocupar cargos de servidão. Mas, ainda assim, ouvi sobre falta de pertencimento e representatividade em situações como ser a única criança negra em uma sala de aula de um colégio particular, ser o único empresário negro em uma mesa de reunião para tomada de decisão, ter vergonha do cabelo por não se adequar ao padrão estético branco, ter o corpo sexualizado, sofrer preconceito ao ser confundida com a babá dos próprios filhos, passar dificuldades por ser estrangeiro e negro em outro país, entre outras diversas histórias. Essas são marcas profundas que carregamos para a vida e que nos tornam mais fortes com o aprendizado, mas elas também criam um senso de auto exigência duro de suportar, em que achamos que o mediano não é aceitável, tem que ser excepcional para se destacar como uma pessoa negra bem sucedida, e isso pode nos custar até nossa saúde mental.

Para além desta profunda roda de conversa, vale exaltar o nosso momento de almoço, em que a comida, para mim, parecia ser de casa de vó. Arroz, tutu de feijão, couve e bisteca. O cardápio parece simples, mas carrega uma simbologia que só os panelões que vimos dão conta de explicar o que é a ‘comida de Preto Véio!’.

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Andar pela propriedade, ver cada cantinho e entender tudo o que já aconteceu naquele local é muito especial. Além da natureza que nos cerca com sua grandeza, existe algo espiritual e elevado.

E por falar em uma grande conexão, vale falar da dança que reafirmou - ou criou de vez - a nossa relação com os nossos antepassados. Conhecemos o Jongo, um jogo, uma brincadeira, uma forma de expressão. O som do tambor pulsa no nosso peito e ecoa na alma nos lembrando quem somos e honrando aqueles que vieram antes de nós.

Que dia! Voltei para São Paulo certa de que tinha vivido algo único, especial e transcendente. Ainda tenho muito a descobrir sobre a minha ancestralidade e sobre os meus antepassados, mas, desde a minha entrada no Black Founder Fund um portal se abriu dentro de mim, pois descobri que foi a minha origem, minhas raízes e cultura que me colocaram no lugar que tenho a honra de estar hoje e por isso sou muito grata.

Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Estes relatos são de fundadores de startups apoiadas pelo Black Founders Fund, fundo destinado a startups que possuam em seu quadro societário fundadores ativos que se autodeclaram negros e negras, sejam constituídas e em operação no Brasil e estejam buscando investimentos em estágio pré-seed ou seed.

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